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Representação Social: realidade condicionada, o caso dos Sem-Abrigo


Representação Social: realidade condicionada, o caso dos Sem-Abrigo 

"Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que não veem, Cegos que, vendo, não veem." "É necessário sair da ilha para ver a ilha, Não nos vemos se não saímos de nós."- José Saramago

 A realidade vista por cada um de nós é condicionada pelas nossas experiências e pelo conjunto das relações que partilhamos uns com os outros, que constituem no seu todo aspetos da nossa cultura. Esta realidade é também condicionada por estereótipos, preconceitos e representações sociais, que na maioria dos casos conduzem a uma análise negativa e estigmatizada que leva à exclusão.
Neste sentido partilho um episódio de amigos, evidenciando a influência que as representações sociais têm sobre a nossa forma de agir e que em parte constituem um pensamento ideológico.
Após um dia maravilhoso, passado na zona da EXPO em Lisboa, eu e vários amigos decidimos que era hora de procurar um local para jantar. Estava a anoitecer e enquanto percorríamos a zona, fomos reparando na existência de muitos homens e algumas mulheres, que nos vãos das escadas, nos baixios das lojas, por baixo dos candeeiros públicos e junto aos edifícios culturais, preparavam pequenos abrigos para passarem a noite. A situação impressionou-nos de tal modo, que se tornou o tema do jantar nesse dia.
As formas como cada um de nós descrevia “os sem-abrigo” variavam. Para uns tratava-se de pessoas que não queriam trabalhar; outros; que eram pessoas loucas, doentes mentais; alguns, pessoas nojentas, sujas e porcas; pessoas bêbadas, drogadas, perigosas, criminosas e até alguém se lhes referiram como uns coitadinhos.
Estas caracterizações correspondem há existência de representações sociais pejorativas em relação à população sem-abrigo que influenciam o modo como os vemos.
Segundo Moscovici (1978), as representações sociais são referências que “circulam”, cruzam-se e se cristalizam incessantemente, através de uma fala, um gesto, um encontro, no nosso universo quotidiano, além disso elas convencionam os objetos e pessoas e, além de darem a eles uma forma definitiva, transformam-nos em modelos de determinado tipo que passam a ser partilhados pelas pessoas na construção de suas realidades.
É muito provável, que no jantar de amigos, cujo diálogo se proporcionou à volta dos sem-abrigo, novos conceitos tivessem sido adquiridos por cada um dos intervenientes, um efeito consequência do diálogo, da comunicação, das opiniões, estereótipos e experiências pessoais que no seio deste grupo se difundiram.
Apesar disso, destaco que as representações sociais emanadas no grupo de amigos sobre os sem-abrigo reforçam a afirmação de valores negativos, que podem ser considerados ideológicos, uma vez que cristalizam relações concretas de dominação, assente nos seguintes pressupostos:
- O sem-abrigo “é um calão improdutivo”, assenta na ideia de que quem não trabalha é responsável por essa condição. O trabalho é visto como condição necessária de coesão social, quem não trabalha fica na margem;
- O sem-abrigo “é um louco”, discurso psiquiátrico associado ao sem-abrigo, um desajustado socialmente, com distúrbio de personalidade, objeto de estranhamento e repulsa;
- O sem-abrigo “é nojento”, discurso “higienista”, que estigmatiza a pessoa que vive na rua, representado como um maltrapilho, de aparência repugnante e suja. O “lixo” deve ser removido;
- O sem-abrigo “criminoso”, indivíduos ameaçadores que provocam o medo, devem ser presos;
- O sem-abrigo “coitadinho”, visão dos sem-abrigo como dignas de piedade, “discurso religioso”.
As representações sociais negativas contribuem para a exclusão. Passamos diariamente sobre os que vivem na rua sem olharmos para eles, dedicamos-lhes total indiferença, quase não os entendemos enquanto pessoas, estamos desumanizados?
A forma como o senso comum representa socialmente o outro pode conduzir à exclusão, à marginalização. É imperativo abordar o quotidiano com um olhar mais diferenciado, mais estreito no relacionamento com o outro. Fazer uma rutura com o senso comum em todos os campos do saber é a condição necessária e urgente.


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