Estudando em Lisboa, porém não residindo, é me permitido observar e até contactar, nos
transportes públicos, com várias situações tão frequentes que pelo hábito até passam
despercebidas. Especificamente o ato de homens darem os seus lugares sentados a mulheres
perfeitamente capazes de ficarem em pé durante a viagem, porém nunca a outro homem, nem
nunca observei esta atitude de uma mulher para um homem. Obviamente que falo
de homens e mulheres ativos e saudáveis.
Este tipo de interações não são de todos estranhas, pelo contrário são tão banais que as
ignoramos e quando nos confrontamos com estas situações, a resposta é inata e imediata,
sabemos perfeitamente como agir. Na verdade, foi-nos incutido este comportamento a vida
toda, sendo que na realidade nem são coisas com as quais percamos muito tempo a
questionar.
Mas, na realidade, para sermos treinados a vida inteira para uma situação que nem sequer
recordamos a sua origem ou o porquê, esta ter alguma importância, algum significado maior.
Podemos assim caracterizar esta situação em específico como um regra/norma da vida em
sociedade, proveniente das noções de "cavalheirismo", termo que é definido como "Ação ou
qualidade própria de cavalheiro" (dicionário Priberam). Temos como outros exemplos de ações
cavalheirescas, por exemplo, abrir a porta do carro a uma senhora, puxar a cadeira para ela se
poder sentar, oferecer-nos para pagar a conta de uma refeição, ou mesmo assumir que ela não
o terá de fazer.
Superficialmente, ninguém classificaria estas ações como erradas pois, na realidade,
demonstram gentileza, cuidado, nobreza e uma certa preocupação pelo outro. Mas estas ações
dependem puramente do contexto em que se enquadram, pois muitas das vezes partem de um
pensamento preconcebido que tem como base a inferioridade das mulheres, que elas não são
capazes de determinadas situações apenas porque são mulheres.
Esta relação de poder foi assim normalizada ao longo do tempo, estando presente desde
sempre no conceito de qualquer sociedade ocidental. Inclusive, a presença de Eva no Antigo
Testamento, pode revelar-se como um exemplos de como o pensamento machista acabou por,
e de certa forma, moldar toda a sociedade ocidental. Eva, na realidade representa a mulher
como um ser fraco, suscetível ao pecado. Como castigo, a expulsão do Paraíso, devido ao
facto de não se subjugar aos desejos do homem, sendo este o seu papel primordial, pois foi
criada a partir de uma costela de Adão, pressupondo este facto desde já, uma inferioridade.
Esta relação de poder evoluiu com o passar do tempo, normalizando-se cada vez mais,
tornando-se cada vez mais inerente ao conceito de sociedade ocidental, passando também
pelo amor cortês medieval onde a mulher era simplesmente vista como um troféu, uma
recompensa de uma batalha ou de uma aliança estratégica de interesses.
O papel da mulher fora assim traçado, e não questionado até que várias mulheres começaram
a entrar em meios que era dominados por homens, como a ciência, a literatura, a arte, o ensino
entre outros, chegando ao operariado, mas sempre com funções que eram determinadas como
subalternas, femininas.
Por outro lado, o cavalheirismo, sempre foi um instrumento de cortejo, onde o homem só por
ser gentil pressupõe que a mulher seja obrigada a retribuir ao seu interesse e ainda hoje,
quando não existe esta reciprocidade, o homem fica surpreendido perante a audácia da mulher
frente à sua natural superioridade, levando por vezes a casos extremos de violência física e
sexual.
No contexto social atual o cavalheirismo é um instrumento fulcral para a construção de uma
narrativa machista e patriarcal, normalizando ainda mais uma sociedade machista não
igualitária em direitos e deveres, que na realidade a muitos aparece como natural, mas que é
somente uma construção social. Este conceito, disseminado de forma discreta, subtil tenta
muitas vezes e ainda passar como pura gentileza, não é assim tão inocente pois
comportamentos humanos não são coisas dadas pela natureza e pela biologia, mas pela
cultura e pela sociedade.
É particularmente importante prestar atenção a este e outros conceitos, neste clima político e
social, onde ainda e cada vez mais se luta por direitos humanos e particularmente pela
igualdade de género e onde os homens começam a ser responsabilizados e punidos
socialmente por atitudes abertamente machistas.
Concluo dizendo que NÃO devemos NÃO ser gentis com mulheres, mas não as devemos olhar
como seres inferiores só por serem mulheres. Devemos sim, tratar todos com respeito, e sim
gentileza, independentemente do seu género, pois se o cavalheirismo fosse realmente um
código de conduta que defendesse que, em qualquer situação, a pessoa mais forte e mais
capaz e mais apta deve sempre ajudar a pessoa menos forte, menos capaz e menos apta, de qualquer género, então, este seria um conceito revolucionário.
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