Avançar para o conteúdo principal

luz e cor

Em Lisboa o sol é brilhante. Queima as fachadas e deslava o céu. É tão forte que se impinge na minha consciência como os “olás” matinais dos meus vizinhos.
No norte, as cores são mais intensas. Enquanto que cá o sol se pôe como um candeeiro se apaga, lá parece que se dá um curto circuito - irrompem faíscas, espectros vívidos - uma incorreção que o escuro mecanicamente anula.

Acompanhada pelo sol na sua personalidade lisboeta, as caminhadas pela Baixa Pombalina remetem-me para a perenidade da aristocracia. Sinto-a na abertura das praças, nos blocos palacianos que definem ruas inteiras - enraizando-se na cidade como as suas árvores genealógicas -, na calçada que, branca, reflete a luz do sol, do mesmo modo que o rei via deus refletido em si.

O Porto, pelo contrário, gosta de içar a sua identidade burguesa. As casas conseguem ter a mesma alteza, como que a mesma autoridade que as de Lisboa, mas não gostam de se estender ao longo das ruas. Acabam assim que o último elemento prático - as janelas - lhes permitem. 
Imagino que os seus donos originais tivessem algo equivalente ao gosto pelos primeiros nomes que Adorno e Horkheimer apontam nos americanos. Isto é, por um lado, uma reflexão do desprezo por regalias hereditárias e da vontade de individuação e autonomia. Por outro, significa generalização e descartabilidade: arranca o indivíduo das suas raízes, pessoais e históricas. 
Desta maneira, como os seus pores do sol, as casas do Porto são intensas mas fugazes. Quando caminho pela Baixa, pareço estar a passar por filas de pessoas ombro-a-ombro, cada uma vestida com os seus azulejos e jóias de ferro torneado. 

Em Física, as cores são apenas facetas da luz. Igualmente, a percepção do crepúsculo é dependente do sol. O Porto chegou a poder expulsar nobres com a facilidade do “água-vai!”, em última análise, porque o rei os deixava. Era-lhe facultado espaço para individualidade dentro do “aceitável".
Isto lembra-me de outra observação feita pelos autores acima: a ilusão do microcosmo pelo macrocosmo do capitalismo tardio, acompanhada pela “autonomia" das massas (na realidade condicionada pelo e para o poder)

Afastando-me deste significado, é fácil pegar nesta metáfora da cor e luz e redirecioná-la. Posso apontar a burguesia, a nobreza, o clero também, apenas como facetas (ou cores) do poder, todas em algum grau opressivo, distinguindo-se no tom pela forma de legitimação. Ou, saindo do universo cristão, posso imaginar as cores como as diferentes religiões e deuses venerados pelo mundo, que representam, segundo o movimento Gaudiya Vaishnava Hindu, as diferentes facetas do supremo Krishna (a luz). Apropria-se até ao que estou a fazer aqui: ilustrações coloridas e arbitrárias de um conceito abstrato que podemos definir como relações de hiponímia e hiperonímia em que a natureza dos hipónimos é disfarçada com fachadas de autonomia e integralidade.

Uma instância desta desigualdade disfarçada que me tem preocupado ocorre na memória. 
O que resta da luz, da existência plena que se deu no presente das eras passadas é a memória. É o conjunto de algumas cores/facetas que mais atraíram a atenção (quais e porquê é outro tópico interessante - relacionado com o sistema de valores e, consequentemente, poder vigente). Do modo semelhante, conseguimos ver sete milhões de cores, mas temos o hábito de as reduzir a oito nomes. 

Digo que a memória me tem preocupado porque volta e meia sinto o sopro de um espectro, do futuro. Quando estou sozinha perante uma paisagem vasta, ou entre milhares de pessoas num concerto de alguém conhecido, por exemplo. No primeiro, tranquila, sinto de repente os meus olhos na minha nuca, se bem que mais velhos e nostálgicos - em lembrança. Ensurdecida e ao saltos, no segundo exemplo, identifico-me momentaneamente com os londrinos contemporâneos da Mrs. Dalloway, quando a passagem de um carro distinto (“Was it the Prince of Wales’s, the Queen’s, the Prime Minister’s?") provoca uma onda de silêncio contemplativo. 
Deparam-se com um futuro remoto - com a sua morte - e com o nome que viverá por eles. A cor a que serão reduzidos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Black Friday

Black   Friday , Sexta-feira, dia 29 de Novembro de 2019, iniciou-se a tão esperada, por tanto miúdos como por graúdos,  Black   Friday .  Esta data, que simbolizava o início do consumo natalício, começou nos Estados Unidos da América e decorria no dia a seguir ao  Thanksgiving   Day . Ao longo dos anos, a  Black   Friday  foi se mantendo e apresentado ao resto do mundo, como algo necessário e maravilhoso para o povo, provocando a necessidade de ter também, no respetivo país, um dia igual. A  Black   Friday   nos E.U.A. coloca uma grande cadeia de lojas com descontos que na sua maioria ultrapassam os 50%, o que leva as pessoas quase a uma certa loucura para conseguirem comprar o que tanto desejam.  Em Portugal, a  Black   Friday   não atinge todas as lojas, apenas uma minoria, e não atinge valores de desconto tão elevados, ficando pelos 20%, descontos que ocorrem em alguns produtos ao longo do ano. ...

Igualdade ou Feminismo, eis a questão...

"As mulheres de hoje estão destronando o mito da feminilidade; começam por afirmar concretamente sua independência; (...)." (Pág. 7, Beauvoir) O conceito "mulher" é algo que veio sendo modificado conforme as mudanças ocorridas nas várias sociedades ao longo da história da humanidade. Nos últimos anos, o conceito "mulher" atingiu um significado que se deve a um movimento social, filosófico e político designado por "feminismo". Este movimento, que teve início no século XIX devido à revolta provocada pela divergência entre a escravatura e a proclamação dos Direitos Humanos, tem como objetivo encontrar um equilíbrio na sociedade que permita a igualdade entre os sexos. Esse movimento permitiu ao sexo feminino obter direitos que até então lhe eram vedados, obtendo, desse modo, uma independência, até então não conseguida, em relação ao sexo masculino. Esta independência originou alterações no conceito "mulher". Ser mulher, na atual ...

O que era outrora reprodutível é agora irrevogável

Estamos cegos.  Qual o lugar do tempo numa sociedade mediática, engolida por uma necessidade e dependência técnica, que se perde, sem saber naquilo que se perde, porque simplesmente não vê naquilo que se perde?  Somos guiados por uma luz azul, que provém de um ecrã.  Vivemos sem saber qual o sabor de ver a chuva, de ouvir o vento, de sentir o mar…  Transportar este pensamento para a obra de arte, é pedir demais tendo em conta o paradigma em que vivemos. Se não perdemos tempo a olhar para aquilo que nos é mais próximo, porque haveríamos de perder tempo a olhar para uma obra de arte? A obra de arte é distante e precisa de tempo. Já não temos mais tempo…