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A Geração do Vazio

O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel.(Platão, séc. IV a.C.)
Dentro do vazio, procurar algo que não sabemos se está perdido. Olhar em volta, ver rostos, corpos que dançam, imagens voláteis de ruas cheias de mossas de palmos e feridas abertas, algumas cicatrizadas, outras que aparentam uma impossibilidade eterna de se curarem. Não consigo deixar de pensar o quão parecidos somos com estes edifícios que choram, para sempre condenados às mesmas coordenadas e lembro-me do primeiro verso do Uivo, vi as melhores mentes da minha geração serem destruídas pela loucura (Ginsberg, 1956). 
É difícil sentir tudo quando não se sente nada. Este é o paradoxo da minha geração. Somos os filhos dos casamentos falhados e da compensação tecnológica e material. É uma geração podre, os iludidos da vida. Temos tudo, todos tivemos- quase tudo - e, ainda assim, falta sempre algo. Vive-se nesta ânsia de não saber nada, sabendo tudo, de não ter nada, tendo tudo. Já não há tempo para ler ou para escrever porque nós menosprezámos esse tempo e valorizamos as futilidades em detrimento do conhecimento. Não é preciso estudar porque todas as respostas estão à distância de um clique. É horrível. É absolutamente horrível viver assim. Ficamos parados, como fungos à espera de brotar uma podridão qualquer. Depois entristecemo-nos e metemos uma pastilha psicotrópica para dentro- a falsa felicidade que dura até ao momento da recaída de volta ao buraco negro. Sorrimos e está tudo bem, tudo passa, somos jovens, não há nada a temer, a vida ainda mal começou. Tretas. Estamos condenados, já não temos espírito. A minha geração não tem espírito. Não tem nada. Só tem objetos sem valor e uma consciência que se acha muito maior do que na verdade é. Temos os futuros todos nas nossas mãos e não conseguimos ultrapassar o passado, nem viver o presente, vivemos amedrontados, cada um com uma banalidade qualquer que atormenta a sua mínima réstia de sanidade. Toda a gente nos mente, em todo o lado e através de tudo. Comprem isto e serão felizes, comam isto, bebam aquilo, candidatem-se a X e Y e a vossa vida vai mudar. Toma um comprimido feliz e um vale de uma sessão no psicólogo. O prazer personalizado. Escolhe a patologia com que te identificas mais. Opções: ansiedade, depressão, bipolaridade, borderline, anorexia, esquizofrenia. Escolhe e pensa muito bem porque ela vai ser a tua cara, o teu coração, os teus membros e a tua mente. Se o consumo e o hedonismo permitiram resolver a radicalidade dos conflitos de classe, fizeram-no ao preço de uma generalização da crise subjetiva (Lipovetsky, 1983). Aí vêm eles, a família dos alienados! Olheiras tapadas com tinta, cortes escondidos nos braços, os egos inflamados de nada. Há muito pouca felicidade na minha geração. Todos se cansaram de fazer perguntas. Relativizou-se o pensamento ignóbil e a febre. As luzes são todas artificiais, a maioria vive em pesadelos digitais. As ruas respiram sozinhas, já faltou mais para nos tornarmos apenas números de série extrovertidos no paralelo da nossa existência a celebrar a atomização e a  individualização narcísica.
São os que sobrevivem à loucura de nada sonhar, de nada alcançar, de não sentir nenhum sentimento verdadeiro, físico, metafísico, forte - apenas uma indiferença surda e cega, arrebatadora - que resistem e, dentro de si, conseguem alcançar a antítese, conseguem vislumbrar a forma, a matéria e a poética dos rostos, dos corpos que dançam, das imagens das ruas magoadas, ascendendo a algo mais esperançoso, a uma possibilidade que seja de ter uma sobrevivência mais justificada e não repleta de despojos frenéticos de concretizações efetivas de algo que seja realmente algo, e não apenas a ideia de que algo pode ser possível. Retornar ao corpo de onde nascemos, voltar a nascer, renascer, desnascer. Sentir e aceitar a espécie de estranho orgasmo do Homem unido ao seu destino. Vislumbrar a essência das coisas, dos corpos, do tempo e do espaço. E senti-los verdadeiramente.

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