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Aquilo que usualmente chamamos de "ir contra a corrente"

Por vezes, gosto de passear pela nossa cidade, surpreender-me com recantos escondidos, frequentemente esquecidos por aqueles que por aqui passam na pressa frenética de chegar a algum lado, como se a meta desejada estivesse na eminência de lhes escapar e fosse preciso correr para a impedir de tomar o próximo barco. 

Por vezes, também me revejo neles e pergunto-me o que é que mudou e como é que essa mudança ocorreu de forma tão repentina que não nos demos conta. Porque é que nos deixámos de importar com o outro, em detrimento de uma dedicação irrepreensível a sequências de imagens falsas que proclamam felicidades perfeitas e, por isso, irreais?

No instante preciso em que coloco o primeiro pé na carruagem do comboio e observo sem poder evitar o sentimento cru de solidão que subsiste nas expressões de cada indivíduo, lembro me de Marx e apercebo-me do quanto tinha razão. 

Vivemos, embora conscientemente e é isso que me assusta mais, alienados do mundo sensível, da natureza que nos envolve e que continuamente nos chama sem obter resposta. Vivemos, fundamentalmente, alienados dos outros, um tipo de alienação que Marx denominaria de “alienação da nossa vida genérica". Com vida genérica, acredito que Marx pretenda referir-se àquilo que é característico da espécie humana e que não se revela nas restantes espécies animais, de que a empatia, a consciência, a necessidade de uma convivência social são apenas alguns exemplos.

Face a isto, parece-me que valerá a pena esforçarmos-nos por reverter o processo, pois, ao contrário do que o nosso instinto nos leva a pensar, podemos vir a surpreendermo-nos com as conversas que nos permitimos a ter com “estranhos”, que afinal constatamos não serem tão estranhos assim.

A título de exemplo, lembro-me de estar no Porto numa daquelas tardes de primitivo verão (que nos recusamos a chamar de Primavera, tal é a ânsia de chegarem os dias longos e quentes)  e de apanhar o autocarro para casa da minha tia na Foz. Cansada, sentei-me no primeiro banco que vi, completamente alheia do que estava à minha volta. Ao meu lado, sem que me desse conta, estava um indivíduo que aparentava ser um pouco mais velho que a minha avó. Sem o reconhecer, de início achei estranho que me interpelasse, mas à medida que a conversa se desenrolava, vim a tomá-lo como um ser interessante e culto que me contava com grande entusiasmo as eternas reconstruções daquelas zonas, as casas das quais ainda restava uma fachada já envelhecida, as outras que haviam sido destruídas por completo para albergar grandes prédios que agora ali se erguiam. Sem conseguir explicar exatamente porquê senti-me feliz e penso que é essa felicidade genuína que devemos buscar, que só surge se nos permitirmos a trocar palavras com os outros, ao invés de permanecermos no nosso mundo, alienados, de certa forma, de nós mesmos.

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